
Marita Setas Ferro
Desdobra-se em diversos projectos, desde o design de produto, escultura e artesanato, sempre com a vontade de aprender mais e exigindo-se a novos patamares de qualidade baseada no conhecimento. Não é fácil apanhá-la, pois entre uma base como directora artística e a curadoria na Double J Collective Gallery, no Dubai, Emirados Árabes Unidos, percorre os principais mercados estrangeiros e seus palcos de moda. Distinguida em reputados prémios de design, fica com a impressão que anda sempre dois passos à frente do nosso tempo. No ano passado foi designada embaixadora do Pacto do Clima Europeu e vê-se mais como uma força positiva do que um ponto de conflitos.
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Entrevista por Tiago Krusse
Fotografia de abertura de Henry Kappaun

O que marca o seu percurso profissional desde 2008, altura em que apresenta a marca Marita Moreno, até hoje, no que em termos de design de produto e de objetivos pessoais diz respeito?
Os meus objectivos pessoais estão sempre ligados ao trabalho que desenvolvo, quer seja como designer, directora artística da Marita Moreno, como artista ou como directora e com a curadoria na Double J Collective Gallery. Nestes anos nunca deixei de explorar a escultura em diferentes materiais, assim como projectos de design inovadores na área do calçado.
2008 foi o ano da criação da marca Marita Moreno, no âmbito da pós-graduação em Design e Marketing de Vestuário na Universidade do Minho, que concluí com sucesso. A marca surgiu da constatação de que não existia, no mercado português, uma marca com design contemporâneo que aplicasse têxteis tradicionais, conferindo assim unicidade a cada peça.
Em 2009 iniciei o meu mestrado em Escultura, concluído com sucesso, tendo como tema “a peça de vestuário como objeto tridimensional artístico”, numa abordagem aprofundada ao conceito de wearable art.
Até 2015 desenvolvi a marca Marita Moreno, introduzi o uso de burel em casacos construídos a partir de formas geométricas sem desperdício e criei uma linha de acessórios — bolsas e mochilas concebidas a partir de uma única peça, cuja volumetria surgia quando fechadas. A bolsa Shell permanece até hoje como peça icónica da marca.
Em 2015, fiz o rebranding da marca, dedicando-me exclusivamente a sapatos e bolsas. Conquistei vários prémios internacionais, destacando-se o German Design Award 2022, na categoria de Eco Design.
Os anos de 2021 e 2022 foram também marcos importantes, com a abertura da primeira flagship store Marita Moreno, no WOW, em Vila Nova de Gaia, e de uma pop-up store no Porto. Em 2023, a loja do Porto foi distinguida com o Prémio Essência do Ambiente, na categoria de responsabilidade social e ambiental.
É com orgulho que, em 2023, a Marita Moreno se tornou membro da United Nations Conscious Fashion and Lifestyle Network e, em 2024, embaixadora do Pacto do Clima Europeu.
Em termos artísticos, recebi o convite para expor no World Art Dubai 2022 e investi mais na escultura, assumindo também o papel de directora artística e curadora da Double J Collective Gallery. Em três anos de trabalho no Dubai, criámos uma comunidade vibrante com artistas de todo o mundo, trazendo projectos inovadores e temáticas disruptivas, afirmando a galeria no panorama do fine craft da região do Golfo.
Há um perfil a quem destina o seu trabalho ou é a sua paixão que dita tudo aquilo que produz?
A paixão é sempre o motor da criação. No entanto, desde o início defini um perfil específico para os consumidores: pessoas a partir dos 35 a 40 anos, com elevado nível cultural, apreciadores de arte e artesanato de qualidade, conscientes da riqueza patrimonial portuguesa e conhecedores de diferentes culturas. Dentro destes parâmetros, em 2008 lancei uma colecção de senhora com peças únicas de vestuário, enriquecidas com técnicas artesanais têxteis como croché, bordados, tecelagem e renda. Percebi, no entanto, que estava à frente do tempo e que a entrada no mercado foi difícil.
Em 2015, ao fazer o rebranding da marca senti necessidade de trazer o mercado masculino para a equação e lancei em Londres as duas linhas com um design inovador, materiais artesanais e colecções limitadas e numeradas.
Embora a paixão seja determinante, é sempre necessário adequar o trabalho ao perfil de consumo, que no caso da Marita Moreno pertence a nichos de mercado.
Em que contextos sente que o seu trabalho é apreciado e respeitado pela seriedade como aborda as suas ideias?
Quando falamos de vestuário e complementos -bolsas e sapatos-, a associação imediata é à moda, muitas vezes vista de forma superficial como “estilismo”. Mas o que faço é design de produto, uma área exigente que implica ergonomia, função e comunicação. O vestuário precisa responder a funções básicas — protecção, conforto, segurança, até questões técnicas como resistência ao fogo ou apoio desportivo — mas também a funções simbólicas e sociais: estar “na moda”, comunicar pertença, identidade ou atitude. Muitas vezes essa dimensão simbólica é desvalorizada, mas considero-a essencial. A cor, por exemplo, não é apenas estética: transporta significados culturais distintos consoante o contexto. O preto pode parecer pouco interessante em moda mas é riquíssimo em termos de simbologia.
É neste enquadramento — análise, semiótica, função e forma — que me sinto mais respeitada. É também neste território que gosto de discutir ideias, entrar em controvérsias construtivas e desenvolver novas perspectivas que alimentam a criatividade.
Onde o trabalho artesanal ganha mais valor quando comparado aos produtos produzidos em massa e aos processos industriais?
É sobre a imperfeição, os traços do feito à mão e a luta do trabalho manual pela perfeição com uma noção do valor do imperfeito como numa atitude wabi sabi, onde a imperfeição em superfícies e formas é valorizada como parte integrante do design que adora a natureza. O trabalho artesanal ganha mais valor em comparação com objectos produzidos em massa, ele tem materiais naturais como a madeira, a pedra, a argila, o vidro ou o metal forjado, assim como as propriedades naturais do material como as superfícies irregulares, as estruturas de grãos de madeira, etc., tudo isso precisa de ser respeitado em termos de trabalho com as propriedades específicas do material ao invés de trabalharmos contra elas. Somente produtos artesanais podem reagir a materiais em constante mudança como os mencionados, enquanto produtos em massa não podem adaptar-se devido ao processo de produção industrial. Há superfícies tácteis e imperfeições valorizadas, bem como traços de trabalho artesanal, tornando os produtos mais atraentes ao tacto e, portanto, produzindo um desejo de acariciá-los e tocá-los. Essa dimensão táctil cria uma sensação de proximidade e leva a uma relação mais próxima com aqueles objectos artesanais que mostram individualidade como nós.
Quando é que se dá a sua ligação ao Dubai, nomeadamente à Double J Collective?
A minha formação foi diversa e isso reflectiu-se no meu percurso profissional. Estudei três anos de design de moda no Citex, segui para Belas-Artes, licenciatura de cinco anos, completei uma pós-graduação em Gestão Cultural, no ISCTE, outra em Design e Marketing, na Universidade do Minho, e finalizei com um mestrado em Escultura na FBAUP.
Paralelamente, fui professora e coordenadora de cursos de design de moda, além de dirigente em associações ligadas à arte e à cultura. Entre 1999 e 2002, dirigi o QuarteL das Artes no Porto -antigo quartel da Arca d’Água-, transformado num laboratório de criação com teatro, dança, música, artes plásticas e workshops. Foi aí que percebi a importância da gestão cultural e que decidi aprofundar essa área no ISCTE, onde conheci o Jorge Cerveira Pinto, ficando amigos desde então. Mais tarde, em colaboração com ele e com Jonathan Silva em projectos associativos, surgiu a oportunidade de trabalharmos juntos. Quando decidiram criar uma galeria no Dubai, convidaram-me para assumir a direcção artística e a curadoria. A experiência acumulada nas artes e ofícios, ao longo de mais de 20 anos, deu-me a visão necessária para contribuir de forma diferenciada ao projecto.
Como é para si dirigir artisticamente, nos Emirados, um projecto com características singulares no território e no relacionamento com outros designers e artistas?
É uma experiência que adoro! Como designer, artesã e artista, tenho uma curiosidade natural por compreender os processos criativos de outros: como trabalham, o que sentem, como construíram o seu percurso. Cada história criativa é única e inspiradora.
Na Double J Collective, esse diálogo é constante. A galeria dedica-se exclusivamente ao fine craft, um espaço em que o design nasce do saber-fazer artesanal. A minha experiência em cerâmica, guarda-roupa e cenografia, têxteis, madeira, metal, couro e técnicas como gravura ou impressão manual dá-me uma visão ampla sobre a qualidade técnica e artística necessária. Além disso, gosto de propor ideias inovadoras e até disruptivas, que são acolhidas pelos donos da galeria. Esse espírito tem sido fundamental para afirmar a galeria como um espaço singular no Dubai, dedicado ao fine craft e ao design baseado na tradição artesanal.
Isso cria-lhe algum desconforto, no sentido em que tem de avaliar e dar oportunidade a outros que também se cruzam no seu campo?
De forma alguma. Pelo contrário, sinto uma enorme satisfação. A minha maturidade e experiência permitem-me distinguir claramente o que faço como designer, artista e curadora, sem sentir conflitos. Acredito que é essencial abrir espaço a projetos inovadores, muitas vezes de artistas locais, que não recebem a mesma valorização que criadores europeus ou americanos. É precisamente nesse cruzamento de culturas, técnicas e visões que reside a riqueza do projecto. A Double J Collective prova que o Dubai não é apenas um melting pot de negócios, mas também de cultura. Essa dimensão multicultural é uma força que merece ser mostrada e valorizada.

Quais os motivos que lhe fizeram perceber a necessidade de ir para fora do país?
A minha forma de estar nunca foi muito portuguesa. Sempre gostei de cumprir regras, não gosto de atrasos e tenho os projetos prontos antes do prazo. Também separo a amizade do trabalho. Por isso, nem sempre me senti aceite numa sociedade onde muitas vezes se valoriza quem improvisa em cima da hora, mesmo que isso implique mais custos e imprevisibilidades. Sempre procurei trabalhar com pessoas de diferentes nacionalidades, com ritmos profissionais semelhantes aos meus. Ao mesmo tempo, conciliava essa exigência com o trabalho voluntário em estruturas culturais e artísticas. Quando pensei em emigrar, coincidiu com a fase em que conheci o meu futuro marido. Entre a vida familiar, a criação da marca e o seu rebranding em Londres, em 2016, percebi de forma clara que o meu trabalho era muito mais valorizado fora de Portugal.
No seu trabalho faz uma distinção entre design e arte?
Sim, essa distinção é essencial. Para mim, o design tem função e a arte é fruição. Como tenho uma marca de sapatos e faço esculturas em crochet, os objectivos são diferentes em cada campo. A minha formação artística influencia fortemente a estética da marca, desde a apresentação dos produtos até à linguagem visual. Contudo, um sapato tem de ser calçado, confortável e adequado a um público específico. Essa função é inegociável. Já na vertente artística, todo o meu percurso em design de vestuário, têxteis e cor foi fundamental para desenvolver esculturas têxteis. Mas neste caso não penso em mercados ou tendências. O objectivo é transmitir mensagens, sobretudo ambientais, como a morte dos corais. Tal como na marca, a sustentabilidade está presente, mas manifesta-se de outra forma, mais material, visual e simbólica.

Tem vindo sempre a desenvolver as artes plásticas e o interesse em aprofundar os saberes do artesanato. Que trabalhos seus lhe têm preenchido mais em termos de técnica, complexidade e princípios ligados à sustentabilidade?
Sem dúvida, os mais desafiantes têm sido os ligados à marca. Quando olhamos para um sapato, não imaginamos a quantidade de componentes escondidos que permitem conforto e usabilidade. A ergonomia é complexa, pois o pé humano tem 26 ossos, além de músculos e tendões. Na minha marca, que não é técnica, os aspectos estéticos são fundamentais. Ao acrescentar a dimensão da sustentabilidade, surgem ainda mais exigências: nem sempre existem materiais técnicos sustentáveis; fábricas locais, muitas vezes familiares, não estão preparadas para substituir componentes; os processos de prototipagem tornam-se longos e caros; o desenho inicial precisa de ser adaptado para evitar costuras em zonas sensíveis; os saltos altos afectam a saúde, mas são procurados. Tudo isto faz do design um verdadeiro exercício de resolução de problemas. Um dos projetos mais emblemáticos foi o modelo distinguido com o German Design Award, em Ecodesign. Para o desenvolver, trabalhei desde a génese do material: um têxtil produzido em tear artesanal, com padrão do século XVII -Açores-, usando um fio sustentável e altamente tecnológico, português. O produto foi concluído em cortiça e sola de borracha natural, numa fábrica em Felgueiras. Este projecto articulou três sectores — artesanato, indústria do calçado e I&D na cortiça — resultando num objecto inovador, sustentável e esteticamente relevante.
As suas esculturas têxteis são profundamente visuais e ao mesmo tempo sentimo-las palpáveis. Quais foram os motivos que a levaram a produzir estas peças?
Comecei as esculturas em crochet há vários anos, muitas vezes como um exercício pessoal de exploração de texturas e formas. Expus algumas em 2015 e 2018, mas o mercado ainda não via a “arte têxtil” com grande interesse. A sustentabilidade esteve sempre presente como preocupação transversal, especialmente ligada à vida marinha. A morte em massa de recifes de corais impressionou-me profundamente pelo desequilíbrio que provoca nos ecossistemas.
Durante a pandemia, desenvolvi várias peças e, em 2022, fui convidada pela Double J Collective para apresentar no World Art Dubai. O sucesso foi imediato e deu-me coragem para candidatar-me a dois eventos internacionais em Londres — Collect Open e Icons Selected – Craft Week — onde fui seleccionada. Nessas experiências percebi algo novo: o conforto visual e físico que as esculturas transmitem, para além da fruição estética. Esse “duplo impacto” é o que hoje me motiva a continuar a explorar este caminho artístico.

Como é que lida quando vê trabalhos parecidos com os seus? Incomoda-a?
[Risos] Às vezes incomoda, sobretudo quando percebo que há cópias feitas por falta de vontade em criar algo novo. Mas vivemos numa sociedade digital em que uma imagem pode circular pelo mundo em segundos, tornando cada vez mais difícil ser totalmente único.
Na marca, já tive casos sérios, como a coleção DALI para homem, que tive de registar. Após a apresentação em Paris (Tranoï), uma grande marca copiou os modelos quase de forma integral. O sector jurídico do CTCP incentivou-me a avançar com um processo, mas optei por não seguir. Penso sempre: se nos copiam, é porque somos bons.
Que balanço faz destes anos no estrangeiro e da presença em espaços de reconhecida reputação no mercado?
Com a marca atingi um patamar elevado, apresentando-a em feiras e eventos de prestígio, como o calendário oficial da New York Fashion Week, sendo a única portuguesa incluída. A comunicação da sustentabilidade acrescentou enorme valor e posicionou os produtos de forma inovadora, representando Portugal num campo altamente competitivo.
Sou frequentemente citada em livros e entrevistada por estudantes de mestrado e doutoramento em áreas como economia, gestão e têxteis, o que me dá grande satisfação por poder contribuir para o futuro do design sustentável.
Na vertente artística, sinto que estou ainda a começar. Apesar de já ter sido seleccionada para eventos relevantes e de ter exposto em vários continentes, acredito que ainda há muito caminho e desafios pela frente. Isso motiva-me imenso, porque sem desafios não há crescimento.

O valor do investimento que tem feito obteve mais do que o simples retorno ou tem de compensar por outros meios?
Sempre que dou aulas ou formações sobre ecodesign e sustentabilidade na criação de marcas, sublinho um ponto essencial: lançar uma marca de nicho, como é o caso das marcas sustentáveis, exige uma enorme capacidade de investimento. Quando fiz o rebranding da Marita Moreno e avancei para os mercados internacionais, os custos foram muito elevados — desde a presença em feiras internacionais até à produção sustentável, que é sempre mais dispendiosa. Além disso, em 2015, os mercados ainda não estavam preparados para valorizar a sustentabilidade como prioridade. Tudo isto exigiu uma grande resiliência e visão de longo prazo. Senti muitas vezes que estava a ser pioneira, a lançar produtos que o mercado nacional ainda não compreendia. Os meus principais mercados acabaram por ser o Reino Unido, a Alemanha e a Califórnia. Para equilibrar este esforço, recorri frequentemente a trabalhos de consultoria e de formação, tanto a nível nacional como internacional, em áreas ligadas ao ecodesign e à inovação sustentável. Foi dessa forma que consegui compensar os investimentos feitos e continuar a desenvolver a marca.
O que é para si bom artesanato?
O artesanato pode ser entendido em três grandes vertentes: tradicional, contemporâneo e fine craft.
O artesanato tradicional corresponde a produções certificadas, com regras e cadernos de especificações muito rigorosos, garantindo que a técnica e a identidade cultural são preservadas. Em Portugal, existem cerca de 25 produções artesanais certificadas, como o Traje de Viana, que seguem estas normas com exigência.
O artesanato contemporâneo mantém as técnicas tradicionais, mas abre espaço para variações estéticas, como cores ou interpretações visuais diferentes. Ainda assim, nunca se podem adulterar os requisitos básicos, sob pena de perder a identidade.
Por fim, existe o conceito de fine craft, ainda sem tradução perfeita em português, mas que designa o trabalho de artistas plásticos que utilizam técnicas artesanais tradicionais, integrando nelas a sua criatividade e visão estética. É neste território que a Double J Collective Gallery actua, promovendo peças que unem saber-fazer, património e identidade cultural a uma abordagem artística contemporânea.
Para mim, é precisamente nesta intersecção entre tradição e inovação que reside a verdadeira riqueza do artesanato.

Mais informação em www.maritamoreno.com e https://doublejcollective.com