Diálogo aberto
Entrevista a Ana Isa Guerreiro, fundadora do Festival Impacto que vai ter a sua primeira edição, em Lisboa e no Porto, entre os dias 26 de Outubro e 17 de Novembro, cujo tema principal é o preconceito. Uma crente no poder que a cultura tem para inspirar a mudança social.
Entrevista de Tiago Krusse
Fotografia: Cortesia de Isa Ana Guerreiro e da Deadinbeirute
Entrevista de Tiago Krusse
Fotografia: Cortesia de Isa Ana Guerreiro e da Deadinbeirute
O que é o Festival Impacto e como todo ele foi estruturado?
O Festival Impacto foi concebido e implementado como um “lugar” de reflexão e de debate. No seu cerne, o festival parte de um tema e explora-o meticulosamente, examinando a sua influência em várias dimensões: sociedade, pessoal ou profissional. Ao aprofundar um tema pretendemos descobrir a sua raiz, descascando as camadas para chegar à sua totalidade. Nesta primeira edição, o Festival Impacto tem como tema central o Preconceito, reconhecendo e entendendo que o preconceito é uma “opinião, favorável ou desfavorável, formada antecipadamente, sem fundamento sério ou análise crítica”.
Para tentar compreender este tema, adoptámos uma abordagem multidisciplinar, e através de iniciativas de grande escala como o ciclo de conversas ou ciclo de curtas, pequenos encontros como as tertúlias ou workshops, ou com interações individuais como as entrevistas ou o encontro The Human Library.
Reconhecendo que uma reflexão significativa leva tempo, o Impacto orgulha-se de ser um “slow fest”. Começámos desde Fevereiro com uma série de sessões warm up, culminando num festival de um mês e alargando a sua influência com iniciativas itinerantes durante o próximo ano. Uma das caraterísticas de destaque é levar o ciclo de curtas-metragens para a estrada, levando estas histórias a um público mais vasto.
Dos dois eixos da programação, Palco Impacto e Laboratório Impacto, o que destacaria como os pontos mais marcantes de ambos, nos seus distintos propósitos?
Com estes dois eixos, pretendemos orientar os participantes na escolha da forma como desejam viver o festival. Comunicar um evento longo com inúmeras atividades pode ser um desafio, por isso definimos o Palco Impacto como um lugar para o envolvimento passivo do público, onde os participantes podem absorver e refletir sobre discussões, actuações e apresentações. Em contraste, o Laboratório Impacto foi concebido como um lugar interativo e participativo, onde os participantes são convidados a envolver-se activamente, a colaborar e a contribuir, transformando os espectadores em co-criadores da experiência.
Não consigo destacar qualquer atividade como mais marcante… todas foram pensadas para chegar a um lugar de impacto em quem participa.
Quais são as entidades e os agentes culturais que se associaram e como se deu o processo de selecção?
Este festival começou a ser construído há cerca de dois anos e foi implementado com a colaboração de inúmeras pessoas, empresas e organizações. Desde o seu início, como conceito, despertou um profundo sentido de propósito em todos os envolvidos, evoluindo para uma missão humanista que superou todas as expectativas. No centro desta missão está a convicção de que uma mudança social significativa exige a convergência de indivíduos e grupos de diversas origens, identidades e perspectivas.
As organizações e agentes culturais, que participaram como curadores e jurados convidados, foram cuidadosamente selecionados pelo seu alinhamento com os valores fundamentais do festival. A sua experiência abrangeu diversas disciplinas e os seus contributos reflectiram a visão do festival de promover tanto o rigor intelectual como o impacto cultural.
Tanto na fase de warm-up como na fase do Festival que decorre agora, contamos com mais de 100 organizações e agentes culturais a contribuir activamente para este programa ambicioso e abrangente, que consideramos oportuno e necessário. A sua participação enriquece as nossas iniciativas e realça o esforço colectivo necessário para abordar as questões prementes do nosso tempo.
As cidades, Porto e Lisboa, e os seis espaços diferentes onde vai decorrer o festival, foram decisões que tiveram em consideração que tipo de factores?
O Festival Impacto decorre em Lisboa, em seis espaços, o Teatro da Comuna é o lugar para o Ciclo de Conversas, a Ageas Portugal acolhe no seu edifício do Parque das Nações os workshops (com a única excepção do workshop de língua gestual, que será realizado no Porto), a Fábrica Braço de Prata é o espaço para as performances, o Bar So What é a nossa casa das tertúlias, a Biblioteca da Faculdade de Letras acolhe o encontro The Human Library (a biblioteca humana) e o Cineteatro Turim será o lugar para o ciclo de curtas-metragens. Durante a fase warm up estivemos no palco da Fnac Chiado.
Como olha para a sociedade portuguesa? Que retrato faz dela em termos de capacidade de raciocínio e de reflexão sobre os factos da nossa realidade?
A sociedade portuguesa, como muitas outras a nível global, está a sofrer uma profunda transformação na sua capacidade de reflectir criticamente sobre as realidades sociais e culturais. Esta mudança não é apenas um aumento do conhecimento, mas um despertar para as complexidades da existência, impulsionado por um maior acesso a diversas opiniões e informação. Hoje, a sociedade civil em Portugal está mais atenta, activa e empenhada na defesa de causas, sejam elas globais, como a sustentabilidade ambiental, ou nacionais, como os direitos à habitação e ao emprego, bem como preocupações sociais relacionadas com a igualdade de género e a orientação sexual…
À medida que nós cidadãos aprofundamos o nosso envolvimento com o mundo que nos rodeia e as sociedades em que vivemos, surge uma apetência crescente pelo diálogo e pela auto-análise. Isto cria um terreno fértil para debates pluralistas, onde os ideais podem ser partilhados e desafiados, promovendo um discurso mais inclusivo e ponderado. Acredito que a sociedade portuguesa está disponível e aberta para enfrentar as suas próprias complexidades, enquanto luta pela justiça e equidade em vários âmbitos.
Com tanto acesso a informação, o que se pode entender por uma sociedade mais informada?
Na sociedade actual, em que o acesso à informação é vasto e instantâneo, estar informado exige mais do que a mera absorção de dados. Envolve um processo consciente de avaliar criticamente o que é apresentado, discernir entre informação factual e falsa ou enganadora. Esta capacidade é vital numa época em que somos continuamente bombardeados por conteúdos seleccionados por algoritmos, concebidos para satisfazer as nossas preferências, criando uma “bolha de informação”. Estas bolhas podem filtrar os pontos de vista que desafiam as nossas suposições, limitando a nossa exposição a perspectivas diversas e reforçando aquilo em que já acreditamos. Este fenómeno pode levar à estagnação intelectual, e apenas permanecer dentro dos limites de narrativas confortáveis e familiares. No entanto, a verdadeira compreensão e o crescimento exigem muitas vezes que se saia da zona de conforto. Ao procurar activamente informações que contradizem ou ampliam o que sabemos, expomo-nos a novas realidades e ideias, promovendo uma visão mais matizada e abrangente do mundo. Esse envolvimento desafia os retratos simplificados e muitas vezes polarizados que os algoritmos tendem a favorecer. No Festival Impacto procuramos romper com estes limites algorítmicos e “bolhas” de informação, promovendo um espaço de envolvimento pluralista e crítico. Através do nosso programa, incentivamos os participantes a explorar uma ampla gama de pontos de vista e se envolverem em discussões baseadas em evidências que transcendem a superficialidade do conteúdo curado. Incentivamos não só o consumo passivo de informação, mas também a participação activa na busca do conhecimento… informação.
No campo social, os sintomas de preconceito, segregação e estigmatização são mais notórios sobre quem?
O preconceito infelizmente pode ser uma experiência universal, embora alguns grupos estejam desproporcionadamente sujeitos a ele, enfrentando frequentemente camadas de discriminação, marginalização e estigmatização. Estas dinâmicas tornam-se especialmente complexas quando múltiplos factores de identidade se cruzam, criando combinações únicas de privilégio e opressão. Factores como o género, a raça, a etnia, a classe, a sexualidade, a religião, a deficiência, a altura, a idade e o peso contribuem todos para esta intrincada teia. O conceito de interseccionalidade, introduzido pela académica Kimberlé Crenshaw em 1989, capta esta complexidade. Refere-se à forma como diferentes sistemas de poder e opressão se interligam para afectar os mais marginalizados da sociedade. A interseccionalidade defende que as identidades não podem ser reduzidas a categorias separadas, como o racismo, homofobia ou o idadismo; pelo contrário, estes sistemas interagem para criar experiências complexas de discriminação. Por exemplo, as experiências das mulheres negras não podem ser simplesmente compreendidas através da lente do racismo ou do sexismo, mas através da forma como estas forças operam simultaneamente. Este conceito desafia os entendimentos simplistas da discriminação, salientando que as identidades sociais não estão isoladas. A interseccionalidade está intimamente relacionada com conceitos como a tripla opressão, que examina como as identidades marginalizadas, como ser homem negro, homossexual, pobre ou imigrante, combinam-se para criar barreiras de discriminação.
Quais as expectativas para esta primeira edição do festival?
Reconhecemos que, embora as nossas expectativas sejam grandes, estamos a fazer a nossa estreia e podemos ainda não ter o alcance ou o impacto que o tema realmente merece. No entanto, isso não nos impede de nos esforçarmos por criar um espaço de debate positivo e de troca de ideias.
O nosso objectivo é promover um espaço onde o diálogo aberto possa prosperar e onde possamos começar lentamente a alargar o nosso alcance para além daqueles que já estão “despertos” para as questões sociais. É fácil que as conversas sobre estes temas permaneçam confinadas a determinados círculos, ou aquilo a que podemos chamar uma “bolha de informação”. Reconhecendo este facto, estamos a fazer o nosso melhor para ultrapassar estas barreiras. Apesar de compreendermos que talvez ainda não tenhamos a escala necessária para penetrar totalmente nestas bolhas, acreditamos que mesmo uma pequena e ponderada troca de ideias tem o potencial de desencadear transformações maiores… o efeito borboleta. Em última análise, a importância não reside na magnitude dos nossos primeiros passos, mas na intenção que lhes está subjacente. Estamos a criar um ambiente onde as pessoas se podem reunir, partilhar e confrontar os seus preconceitos e, esperamos, sair mais conscientes, mais ligadas e mais dispostas a participar na construção de um futuro mais inclusivo.
A comunicação gráfica do festival foi magistralmente elaborada pelos talentosos Deadinbeirute, que excederam todas as nossas expectativas. Abordaram o design com uma visão única, desconstruindo a palavra “preconceito” e transformando-a em poderosos padrões visuais. Este processo criativo reflecte subtilmente a natureza do próprio preconceito – algo que existe à vista de todos, mas que muitas vezes passa despercebido. O trabalho dos Deadinbeirute expõe esta realidade oculta, convidando os espectadores a parar e reflectir.
Já repararam que o preconceito está mesmo ali, à nossa frente, à espera de ser notado?
Ana Isa Guerreiro
Mulher, cisgénero hétero, artista, fotógrafa amadora, produtora cultural, curadora e gestora de eventos com experiência na concepção e organização de eventos culturais.
Licenciada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), e pós-graduação em Desenho na Faculdade de Belas Artes, Ar.Co e na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa.
Trabalhou durante uma década para um grupo editorial português como produtora de moda e design assim como assinou alguns artigos.
As suas anteriores iniciativas na área cultural incluem a produção do WIP Galerias Garrett, um evento cultural que inclui estúdios abertos, residências artísticas, exposições e workshops temáticos.
Cocriou e produziu o Desenha 12, um evento nacional que reuniu uma rede diversificada de entidades culturais e artísticas para promover o desenho através de uma plataforma multidisciplinar.
Em 2021 contribuiu com a sua experiência para o TEDxLisboa como membro da equipa de produção.
Com uma forte crença no poder da cultura para inspirar a mudança social, pretende ultrapassar fronteiras e promover um diálogo significativo através do seu trabalho na produção cultural.
Mais informação sobre o Festival Impacto em: https://festivalimpacto.org/festival-i/