
A mestra do corpo
Para Maria da Piedade Ferreira o corpo tem um manancial para perceber e explorar, partindo dele estrutura a sua tese de doutoramento e aplica a arquitectura corporeal no ensino, dotando os seus alunos de ferramentas que lhes permitem aprofundar as suas capacidades sensoriais e com elas obter outros estádios de criatividade com os complementos necessários à execução de ideias. Um percurso firme nos seus ideais, repleto de experiências e resultados práticos que questionam um ensino que se encontra em desacordo com as novas realidades.
Entrevista de Tiago Krusse
Fotografias: Cortesia de Maria da Piedade Ferreira

O que é a Arquitectura Corporeal e quais os pilares estruturantes deste trabalho, académico e prático, que tem desenvolvido nestes últimos anos?
A Arquitectura Corporeal é um projecto de investigação artística aplicado ao ensino da arquitectura, interiores e design. Surgiu de um interesse de longa data, nos temas do corpo e espaço e da sua relação com a arquitectura. O trabalho tem uma fundamentação teórica que é sustentada pelas teorias da neurociência, ciências cognitivas e psicologia e pela minha prática e trabalho de corpo como artista da performance.
De que forma o seu processo de crescimento a trouxe até à arquitectura, com as artes visuais e a performance, com ligação à ideia de corpo, a fazerem parte de uma série continuada de projectos?
O meu interesse nos temas do corpo começou com experiências difíceis que tive desde a infância, pois além de ser canhota, eu tinha bastantes dificuldades com formas de brincar mais físicas e que me isolaram de outras crianças. O meu desenvolvimento cognitivo era mais avançado do que o dos meus colegas o que também ajudou com a experiência de alienação. E depois havia também a asma, as alergias e problemas de integração sensorial que criaram dificuldades de aprendizagem na escola, que felizmente consegui contornar. Por isso havia sempre a curiosidade em saber o que é que me faz ser diferente, porque é que o meu corpo faz as coisas que faz e como posso aprender a viver nele da melhor maneira possível. O corpo é o material da performance art, por isso, claro, que este tipo de trabalho me fascinou e mais tarde levou ao meu interesse em neurociência e neurodiversidade. E eu sempre gostei de construir coisas e brincar com materiais, ferramentas e objectos, felizmente as minhas mãos acompanhavam a minha criatividade, mas a minha imaginação queria mais. Como cresci a passar os verões na Costa de Caparica, tive a sorte de poder brincar muito ao ar livre na praia e também na mata onde esse contacto com os elementos estimulou a minha criatividade. E os meus pais deram-me sempre os brinquedos que eu tinha interesse em brincar, incluindo claro muitos Legos que eu misturava com elásticos, fita cola e até super cola para fazer as minhas experiências. Ter crescido numa família onde brincar e apreender sempre foram encorajados teve muita influência pois, apesar de eu ser a primeira pessoa de nós a decidir seguir uma carreira nas artes, ela sempre me apoiou o melhor que pode, mas também me alertou para a falta de segurança e escassas oportunidades de sucesso em escolher essa vida, sobretudo em Portugal. Por isso desde criança eu sabia o que ia ser e que um dia iria viver fora do país. Quando tinha 10 anos li uma biografia do Leonardo da Vinci no livro sobre pintura, da Irmã Wendy Becket, e para mim foi claro que aquela era a vida que eu queria viver. Eu escolhi estudar arquitectura porque eu sempre vivi a arte numa perspectiva total, por isso nunca fiz grandes distinções entre a arquitectura, a pintura, a escultura, a moda, o design, a música, o teatro e a performance. Antes de entrar na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, onde estudei, já tinha experimentado com profundidade todos estes media, por isso na minha imaginação os meus estudos iam dar-me a oportunidade de continuar a desenvolver os meus interesses artísticos, com a vantagem de me preparar para construir coisas no mundo real. De certa forma isso aconteceu, mas não oficialmente, pois a componente artística foi eliminada do ensino da arquitectura há bastante tempo e globalmente. Por isso tudo o que aprendi como artista e performer foi como autodidacta, nas franjas do tempo, entre as tarefas intermináveis para o curso, nas quatro horas diárias em transportes públicos entre Almada e Lisboa e nas aulas de ioga, que comecei a praticar no meu terceiro ano para me ajudarem com as dores de costas e exaustão que vinha das horas intermináveis a fazer desenho assistido por computador -CAD. E um dia, numa aula de ioga, apercebi-me que estava a desenhar e a esculpir no espaço com os meus movimentos. Lembrei-me do trabalho de Oskar Schlemmer e de Wassily Kandinsky na Bauhaus. Foi uma espécie de epifania que me disse que este tipo de trabalho de corpo estava a desenvolver a minha consciência corporal e espacial e que para além de me tornar mais ágil estava também a tornar-me mais criativa, desenvolvendo a minha imaginação e as minhas capacidades de pôr ideias em prática. No dia em que consegui fazer a invertida sobre a cabeça (o que nós chamamos na educação física “o pino“) foi claro para mim que limites são um conceito temporário e relativo, e que os mestres da Bauhaus sabiam bem o que estavam a fazer quando puseram os alunos a fazer trabalho de corpo, inspirado pela sua prática e interesse no ioga e na meditação. Hoje em dia até a neurociência nos diz que este tipo de trabalho tem efeitos no nosso corpo, não só do ponto de vista do desenvolvimento físico e emocional mas também terapêutico.
Tendo o ideal da Bauhaus mais a Vanguarda do terceiro quartel do século XX como algumas das suas referências do seu pensamento e performance, como é que define o seu trabalho?
O meu trabalho tem o objectivo de trazer uma nova vanguarda que é sustentada pela minha observação e experiência, colocar em evidência que os modelos educativos que temos em vigor no momento não estão a oferecer aos alunos a capacidade de desenvolverem todo o seu potencial criativo e que, na realidade, o obstruem. A maior parte dos currículos está a formar pessoas para trabalharem sentadas à secretaria a cortar cartão ou a fazer desenhos em CAD. Com a introdução das novas ferramentas digitais como a Inteligência Artificial e a fabricação assistida, essas tarefas vão, muito em breve, ficar obsoletas. O que, por um lado, são excelentes notícias! A maior parte dos arquitectos está deprimida e com problemas crónicos de saúde que vêm exactamente do modo como temos estado a trabalhar e, claro, dos problemas com a economia, que tornaram as condições de trabalho cada vez mais difíceis. Por consequência das mudanças climáticas, temos também de enfrentar a realidade e que, muito provavelmente, não iremos construir tanto como no passado e que será sem dúvida de um modo e com materiais muito diferentes. Por isso a profissão como a conhecemos está no canto do cisne, o que pode ser assustador mas também abre possibilidades. O meu trabalho é influenciado e responde a estas condicionantes e faz perguntas acerca daquilo que é possível. É, sobretudo, um método que dá aos alunos as ferramentas para aprenderem a sintonizar-se com o seu corpo e os sentidos, prestando atenção à simbiose que existe entre corpo e ambiente (construído ou não) e como esse ambiente, que nós constantemente construímos e transformamos, também nos transforma. O que significa que ao dar forma ao nosso ambiente, damos forma a nós mesmos e, portanto, o futuro, o como seremos, está nas nossas mãos.

Quais os propósitos pretendidos e a que conclusões chegou?
O propósito principal é dar aos alunos as ferramentas para que aprendam a sintonizar-se com o seu corpo e perceber como podem tirar partido das suas capacidades para criar e implementar ideias. O meu método de ensino é focado na autonomia, por isso os alunos definem os seus objectivos e limites, abordando os desafios que lhes dou. Até agora as conclusões a que cheguei é que este trabalho é mesmo necessário, especialmente para dar equilíbrio aos efeitos alienantes trazidos pela digitalização. Muitos alunos dizem-me que até trabalharem comigo nunca se tinham apercebido de como sentiam as suas emoções no próprio corpo, nunca tinham prestado atenção aos cheiros e aos sons ao seu redor, à sensação de tocar o chão de diferentes texturas com os pés e de que o seu mundo interior é um universo que vale a pena explorar. São vários os que me agradecem por lhes dar a oportunidade de brincar e cometer erros, sobretudo de falar e aprender sem medo. Pode parecer absurdo, mas esta é a realidade das gerações mais novas, que se sentem alienadas de si mesmos, de outros seres humanos e do ambiente onde vivem. É muito gratificante ver que, tal como eu senti quando comecei a praticar e desenvolver estas ideias, os meus alunos também crescem e progridem, que trabalham e aprendem sem medo e com alegria, sentem-se mais corajosos e capazes de responder a desafios. Por isso concluo que este trabalho é fundamental.
O aprofundar destas matérias e a demonstração prática das suas abordagens, quer no ensino como no meio artístico, poderiam ter sido realizadas em Portugal? Como conseguiu implementá-las no estrangeiro?
Esta é uma pergunta difícil porque ainda não fui convidada para apresentar e desenvolver o meu trabalho em Portugal, apesar de já ter colaborado com várias instituições, não só na Alemanha mas também Suíça, EUA, México, Perú, Brazil, Itália e Espanha. Até remotamente é possível desenvolver este trabalho. O factor essencial é uma questão de abertura. Há cerca de dois anos fui convidada pela Ordem dos Arquitectos a fazer uma apresentação e conversa, que resultou numa discussão interessante. Mas ficou por aí. Antes de emigrar, já tinhas estas ideias, e durante cerca de 5 anos tentei implementar coisas sem sucesso, não consegui financiamento, etc. Mas, na realidade, quando comecei na Alemanha, só tinha acesso limitado a uma sala, quatro alunos e o material de desperdício de um contentor na Universidade Técnica de Kaiserslautern, onde dei aulas como voluntária e fiz as experiências da minha tese. Começou e continuou assim. Todos os meus projectos foram feitos sem orçamento, com materiais reciclados, re-propositados, restos, doações, em espaços ocupados, etc. Já para não dizer que trabalho como freelancer e precariamente. Mais recentemente comecei a fazer pequenos edifícios, com os alunos, feitos com pão e arroz – que transformámos para usarmos como tijolos e funcionou! Tudo é possível desde que haja vontade. Eu acho que o que falta é mostrar em Portugal isso mesmo. Que não é uma questão de recursos, é uma questão de querer fazer as coisas e implementá-las sem desculpas e sem ter medo de errar. Há muita inibição e uma relação um pouco irresponsável com o tempo. Perde-se tempo a fazer coisas que não levam a lado algum e ao mesmo tempo não se descansa o suficiente, vê-se demasiada televisão, passa-se muito tempo nas redes sociais ou no nosso velho queixume, que é provavelmente a raiz de muitos males, porque mata a motivação e arranja desculpas para não mudar nada. A procrastinação que deixa as coisas e os edifícios caírem e arruinarem-se, quando podia ser evitável. Para mim, tudo isto era doloroso de viver.

No nosso quotidiano há todo um conjunto de factores a ordenar o nosso corpo a comportar-se dentro de princípios rígidos. Que tipo de implicações têm estes factores no nosso desenvolvimento físico e mental?
Essas implicações são péssimas. Não é por acaso que as cadeiras foram escolhidas em vários períodos históricos, em diversas culturas, como instrumentos de tortura. Se observarmos como várias das nossas actividades, desde a infância, estão organizadas para que nos sentemos, percebemos que o nosso corpo fica moldado à cadeira. Hoje em dia há muita informação sobre o assunto mas a realidade é que começa logo desde a escola, em que as crianças aprendem a conformar o seu corpo a esta situação e perdem a flexibilidade para explorar outro tipo de movimentos relativamente cedo. Claro que os nossos corpos podem ser trabalhados e nalguns casos o equilíbrio é possível mas para muitos isso já não acontecerá. Isto afecta sobretudo mulheres a quem o acesso ao trabalho dá geralmente duas posturas – o sentar ou o estar em pé horas a fio. A isto juntamos que a maior parte de nós tem pouco contacto com espaços públicos e que passa a maior parte do dia em interiores, muitas vezes apenas com luz artificial e ar condicionado. As implicações do ponto de vista mental são geralmente a letargia e a depressão, que surgem da falta de contacto com a luz do sol e ar livre, pouco movimento, dores crónicas, distúrbios do sono, etc. É claro que também temos de ter em conta que as pessoas com mobilidade reduzida, como idosos ou pessoas com deficiências, não encontram, geralmente, condições que lhes permitam mexer-se no melhor das suas capacidades para que estejam saudáveis, de modo a que possam gerir os problemas que advêm dessas condições de saúde, como a dor ou outras enfermidades.
Que diferenças traça no corpo externo e o interno? Qual a relevância desta destrinça na nossa individualidade enquanto um todo de matéria e espírito? Como ambos interagem na complexidade de um ser que é simultaneamente emissor-receptor e vice-versa?
Também esta é uma pergunta difícil porque não tenho uma resposta fixa. Aqui apoio-me na minha experiência e naquilo que aprendi com a fenomenologia e com a neurociência, especialmente no trabalho de António Damásio. Uma definição seria o corpo como uma espécie de entidade porosa em que a relação interior/exterior se desenvolve numa espécie de circuito continuo bidirecional. Por isso não faço uma distinção entre interno e externo, mas sim entre o “eu“ autobiográfico, e o redor, por assim dizer, que inclui o ambiente construído e os outros seres neles existentes, numa perspectiva ecológica, sendo que o eu autobiográfico tem um núcleo mais ou menos estável, e depois várias outras camadas ou dimensões que têm bastante a ver com a dimensão social e a nossa resposta às condições e desafios do ambiente.
Como foi que a neurociência entrou no âmbito do seu trabalho e investigação? Que ferramentas, actualmente à disposição, tem utilizado?
A neurociência entrou por curiosidade. A minha mãe, que fez o doutoramento em linguística, tinha o livro “Erro de Descartes“ em casa durante a minha adolescência, que eu nem cheguei a ler. Comecei mais tarde a ler, de vez em quando, entrevistas de jornais a António Damaso que tiveram ressonância com as minhas observações e experiências com o ioga e a performance. Encontrei, por acidente, na prateleira de um amigo o “O Sentimento de Si“, exactamente na altura em que tive a ideia de fazer o meu doutoramento em arquitectura com o tema do corpo. Foi uma daquelas coincidências que põem as coisas a mexer. E quando li o livro pensei – porque é que os arquitectos não ouvem falar destas coisas? Há aqui conhecimento que pode ser muito útil para nós! E começou também a dar-me respostas para as minhas perguntas antigas acerca das minhas dificuldades e diferenças. Para a minha tese de doutoramento trabalhei com instrumentos de medição psicofísicos que recolheram vários sinais vitais como o batimento cardíaco, temperatura, respiração, etc. Também trabalhei com dois tipos diferentes de questionários, com medidores das ondas cerebrais e com eye-tracking. A tecnologia já avançou desde aí e estes instrumentos agora são mais precisos, mas já na altura pude observar que as respostas que eu estava à procura estavam nos questionários – não é preciso tecnologia avançada para fazer este tipo de trabalho. No momento não estou a trabalhar com estas ferramentas mas estou receptiva à possibilidade de brincar uma vez mais com elas.

Que campos se abrem através da neurociência para a arquitectura? Que evolução traz ela à profissão?
O mais importante que a neurociência pode trazer para a arquitectura é um melhor entendimento sobre os seres humanos e, especialmente, das suas diversidades. Aí começamos a perceber que temos de mudar os espaços de ensino, de trabalho e também de lazer para acomodar todo o tipo de pessoas e não estar sempre à espera que sejam as pessoas a adaptar-se a situações que não lhes fazem bem. Os arquitectos estão abertos a aprender, se virem as contribuições da neurociência do ponto de vista da ergonomia, por exemplo, mas também da estética. Aqui as coisas tornam-se mais complicadas porque geralmente os arquitectos (o mesmo acontece nas outras profissões) não gostam que ninguém lhes venha explicar porque é que umas pessoas, aparentemente a maioria, gostam de simetrias e outras não – uma pequenina minoria. Guerras e desentendimentos sobre estética não são novidade mesmo para quem esteja dentro do campo artístico e, claro, há uma margem infinita para discussão e diferenças de opinião. Sobretudo não há nunca certezas absolutas. Mas há campos interessantes que vale a pena explorar e as neurociências mostram-nos isso.
De que forma se faz a medição das emoções e que desafios trazem estas novas abordagens?
Há vários métodos de medir as emoções, e o que geralmente fazemos neste tipo de experiências é tentar recolher um conjunto de dados quantitativos e qualitativos que nos dêm uma imagem multifacetada do que estamos a analisar. Isto foi o que eu utilizei para as experiências da minha tese de doutoramento “Embodied Emotions: Observations and Experiments in Architecture and Corporeality“. Mais concretamente utilizei dois tipos de questionários, um mediu o nível de imersão nas experiências e o outro o nível de envolvimento afectivo. Estes questionários foram utilizados com grande sucesso previamente para simulações de realidade virtual para jogos de computador e aplicações militares. Também utilizei uma ferramenta chamada e-health platform, que reunia medidores de vários sinais vitais. O problema deste tipo de sensores é que os movimentos dos participantes nas experiências não podem ser muito naturais para evitar que eles se descolem do corpo por isso, às vezes, a informação recolhida tem flutuações e interrupções, não sendo absolutamente fiável. Daí que os questionários sejam uma excelente opção. Há também as ferramentas mais avançadas como o electroencefalograma -EEG- que mede as ondas cerebrais e o eye-tracking que regista o movimento dos olhos e o nível de atenção. O uso combinado destas ferramentas dá-nos resultados confiáveis e por vezes assustadores, pois percebemos que é possível influenciar o comportamento das pessoas e perceber como se sentem, talvez melhor que elas saibam dizer (mas nem sempre). O maior desafio destas abordagens é mesmo a dimensão ética. A arquitectura não se pode tornar numa ferramenta de manipulação, o que já aconteceu no passado, e o uso destas metodologias tem um potencial autoritário.
Os modelos clássicos do ensino da arquitectura continuam actualizados ou há uma necessidade premente de evolução?
Por acidente, já tinha respondido a esta temática mas aproveito para reforçar. Os modelos clássicos do ensino da arquitectura, de certo modo, desapareceram com a modernidade, depois do fechar da Bauhaus. Desde aí, a tradição humanista desapareceu e o ensino tornou-se progressivamente mais técnico e centrado no design, que depende das normas de estandardizações, os códigos de construção, regulações europeias, no nosso caso, etc. Também se adaptou às ferramentas de desenho digital, que trouxeram grandes vantagens – é impensável voltarmos a fazer desenho técnico à mão. Mas estamos outra vez numa fase de mudança e além de termos uma cultura de trabalho que leva os arquitectos ao esgotamento e depressão muito rapidamente, temos também muita iliteracia. Isto é simples – os alunos não lêem livros não porque não têm interesse ou curiosidade, mas porque não têm tempo. O tempo é todo gasto a fazer tarefas intermináveis no computador ou nas maquetes. Não há espaço para discussão intelectual, não há cultura de experimentação, e os alunos aprendem a conformar-se e a agradar os professores e as suas idiossincrasias porque mais tarde irão trabalhar para eles. Por isso o seu potencial criativo começa a extinguir-se bem cedo. Na realidade esta mentalidade de escravo/mestre está a desaparecer – no ano passado dei uma conferência na Escola Superior Técnica de Arquitectura de Barcelona e, na ronda de discussões, vários colegas disseram que os alunos, em diferentes países, estão a começar a boicotar esse sistema, por exemplo, recusam-se a trabalhar de graça (como eu trabalhei), com o computador, ou no caso da Noruega, os melhores alunos aparentemente estão a construir réplicas de barcos viking em vez de irem trabalhar para os escritórios de arquitectura porque não querem ser escravos (a palavra usada abertamente na conferência foi esta). A Inteligência Artificial vai abrir muito espaço para grandes e necessárias reformas.

As aves migratórias constroem todos os anos os seus ninhos, utilizando os materiais que têm à disposição e não causando estragos ou desperdícios. Por qual razão é o Homem incapaz de reverter práticas que ferem a natureza, no seu todo, evitando desperdícios e implementando estratégias de salvaguarda de matérias-primas essenciais à vida?
Não é! Se virmos o que eu tenho estado a fazer nos últimos 14 anos, é o mesmo que as ditas aves migratórias. O que me faz pensar que se calhar é mesmo o movimento de migração que pode dar aos humanos o instinto de sobrevivência para se virarem e construirem habitats sustentáveis com aquilo que encontram e sem causarem estragos para si mesmos, os outros e o ambiente. Eu sou optimista – quando os seres humanos perceberem que comportamentos destrutivos em relação a natureza, o que inclui a guerra, os ferem a si mesmos, provavelmente haverá aí uma evolução de consciência e começaremos a viver e a construir de modo muito diferente. Mas também podemos imaginar que do mesmo modo que o cérebro humano evoluiu pela influência das ferramentas que criámos, e se entendermos a arquitectura como ferramenta/extensão do corpo, então talvez a arquitectura possa desempenhar um papel na evolução da nossa consciência.
Para si o que é boa arquitectura?
A resposta para esta pergunta é praticamente impossível. Mas dou a comparação com um par de botas, já que os nossos pés nos sustentam o dia todo e são ao mesmo tempo incrivelmente sensíveis. Quando vamos comprar um par de botas temos de as experimentar e ver se nos servem bem em todas as dimensões, se nos vai permitir desenvolver as actividades que queremos com eficácia mas também ou, sobretudo prazer, se o seu design transmite quem somos, o que gostamos e até aquilo em que acreditamos. Idealmente não nos vão magoar, vão ser confortáveis, eventualmente até nos poderão ajudar com uma deficiência ou desequilíbrio, físico ou psicológico. Um bom par de botas não tem de durar para sempre, mas deve durar o suficiente para que nos acompanhe algum tempo e se torne, rapidamente, parte do nosso corpo, num todo integrado entre pé e bota. E no final do seu ciclo de vida, os seus materiais poderão ser reciclados sem demasiado custo e esforço. A boa arquitectura é a mesma coisa.

Doutora Maria da Piedade Ferreira, Mestra em Ciência, é arquitecta, performer, investigadora, educadora e curadora. A sua tese de doutoramento “Embodied Emotions: Observations and Experiments in Architecture and Corporeality” (2016), apresenta o seu conceito de ‘Corporeal Architecture’. O seu trabalho explora as interconexões entre arquitectura, arte e neurociência e tem sido publicado e apresentado em diversos países.
É certificada em ensino artístico pelo método Waldorf e membro de diferentes comunidades, incluindo a ANFA – Academy of Neuroscience for Architecture e o WKV em Estugarda.
Em 2020, como resposta ao COVID-19, fundou o canal de YouTube Corporeal Architecture, um projeto curatorial que funciona como uma sala de educação e exposição de acesso livre.
O seu trabalho como educadora tem lugar em várias instituições internacionais, incluindo a Universidade Técnica de Munique, ETH de Zurique, Universidade Técnica de Kaiserslautern e Universidade de Tecnologia e Ciências Aplicadas de Estugarda.