Pelas mãos do saber
A designer Carlota Verde está há mais de um quarto de século na Ferreira de Sá e a mais recente colecção da marca, Além Tejo, foi o ponto de partida para se falar de tapeçaria, de tempo, de saber e de cultura. Uma viagem ao mundo da tapeçaria portuguesa, das heranças preservadas e dos novos desafios, que afinal abrem novas oportunidades para vincar ainda mais as referências éticas e tecnológicas do produto europeu. O que está para lá de um tapete.

Entrevista por Tiago Krusse
Fotografias são uma cortesia da Ferreira de Sá

Na Ferreira de Sá trabalhamos principalmente com três técnicas, a tecelagem manual, o nó manual e o tufting.

As artes de lavrar e bordar são o que tornam um trabalho têxtil diferenciado e único? Como são elas valorizadas?

Sem dúvida. As artes de tecer e do nó manual são a essência da autenticidade no trabalho têxtil. Cada tapete é o resultado de um gesto humano, de um ritmo, de uma cadência que a máquina nunca conseguirá replicar. Estas técnicas tradicionais, traduzem uma herança cultural e um saber fazer passado de geração em geração, que confere identidade e alma a cada peça. Na Ferreira de Sá, o design nasce do diálogo entre criatividade e saber fazer. Valorizamos o saber artesanal não apenas como herança, mas como ferramenta de inovação e é nas mãos dos nossos artesãos que as ideias ganham tridimensionalidade, profundidade e vida. 

Contando com um quartel de século dedicado, enquanto designer criativa, à Ferreira de Sá, de que forma olha hoje para aquilo que faz e o que aprendeu, nos final dos anos 90, no CITEX no Porto?

As minhas origens e meio familiar foram uma fonte de inspiração e desde cedo o gosto pelas artes e pelo trabalho manual fez parte da minha vida e da minha expressão pessoal. O curso de design têxtil foi fundamental para me dar uma estrutura técnica e uma curiosidade constante por materiais e processos de produção. Olho para o meu percurso com um enorme sentido de continuidade. Quando comecei vivia um momento de grande energia e experimentação. Aprendi a importância do rigor, da curiosidade em explorar novas técnicas e do olhar atento ao detalhe, que possibilitaram a criação de novas texturas e abriram novos horizontes.

Hoje, depois de um quarto de século na Ferreira de Sá, percebo que o design evolui com as pessoas, as tecnologias e as mentalidades. A minha visão amadureceu, não olho apenas para o produto como fim, vejo-o como cultura, como uma forma de dar sentido à matéria, como ferramenta de inovação e diferenciação.

Em que aspectos o seu trabalho sofreu evoluções na medida em que experimentou diversas formas de abordagem, não só como profissional mas também como parte de uma equipa e de uma marca que foi alterando modelos de negócio?

Quando comecei, o foco era o desenvolvimento de produto para marcas de luxo internacionais. Era um trabalho silencioso, mas altamente exigente.
Com o tempo, a Ferreira de Sá deixou de responder apenas a encomendas e passou a construir narrativa. Hoje, cada colecção é uma declaração de identidade. 

Apontamento fotográfico da produção na Ferreira de Sá.

Quando é que se percebe todo o valor acrescentado que existe na mestria de um trabalho artesanal e de que forma ele se destaca de outros processos de produção?

Percebe-se o verdadeiro valor do trabalho artesanal quando se entende o tempo que ele exige, ou seja, o tempo de quem faz e o tempo de quem observa. Cada peça carrega horas de dedicação, gestos repetidos com precisão e um saber que se transmite pelas mãos.

O valor está no invisível, nas pequenas variações, na textura do fio, na paciência do processo. Só quando se acompanha de perto a produção artesanal é que se percebe que cada tapete é mais do que um objecto, ele é uma obra viva, onde o humano deixa a sua marca e o design encontra a sua alma.

Como são as técnicas que emprega na sua metodologia e que diferenças há entre elas?

Na Ferreira de Sá trabalhamos principalmente com três técnicas, a tecelagem manual, o nó manual e o tufting.
A tecelagem é onde fios são entrelaçados em tear, criando superfícies de textura e padrão com uma precisão quase gráfica. O nó manual é uma técnica mais escultórica, onde cada fio é atado individualmente, permitindo um controlo absoluto sobre o desenho, a densidade e o relevo. Já o tufting oferece uma abordagem mais contemporânea e flexível, permitindo explorar formas orgânicas, gradientes e volumes de forma mais rápida, mas sempre com a mão humana como guia.

Cada técnica tem a sua linguagem própria e é escolhida em função do conceito do projecto.

Por que linhas se chegou à concepção desta colecção Além Tejo e que estádio representa ela para a empresa?

Apaixonada pela essência do Alentejo, a colecção nasce da vontade de olhar para esta região e traduzir a luz, a calma e a imensidão das paisagens em linguagem têxtil. É uma celebração da cultura e da paisagem única dessa região de Portugal. 

A colecção Além Tejo representa uma síntese entre tradição e contemporaneidade. É um exemplo de como o design pode nascer da identidade portuguesa e ganhar expressão global, mantendo o carácter artesanal que define a marca.

Mas não é um caso isolado. Ao longo dos anos, temos desenvolvido colecções de forte carácter cultural, como a colecção Echoes inspirada nas grutas de Portugal, nas tradições populares com peças como o Careto ,ou nas ilhas, onde o design se aproxima da natureza, da cultura e da emoção.

Todas estas colecções reflectem o mesmo propósito que é transformar a identidade portuguesa em design contemporâneo, ligando memória e inovação.

“Solo”, da nova colecção Além Tejo. Feito totalmente à mão, no a nó, combina lã natural e juta.
“Talha”, da nova colecção Além Tejo. Feito através de uma tecelagem totalmente manual, num tear tradicional.

Como é percepcionada a sua acção enquanto designer dentro do grupo de trabalho?

Procuro ser uma ponte entre pensamento criativo e execução. Acredito que a direcção criativa deve inspirar, orientar e provocar, mas também ouvir. Trabalho em estreita colaboração com artesãos, técnicos e designers, e é desse diálogo que nasce a inovação. Acredito que a minha acção, enquanto designer, é a de dar direcção e coerência ao que fazemos, sem nunca perder o sentido colectivo. No fundo, é transformar visões individuais num projecto comum que honra a tradição e aponta para o futuro.

A selecção de matéria-prima e um dos pontos críticos do vosso processo. Com as alterações que a União Europeia pensa introduzir relativamente ao Passaporte Digital do Produto, o que isso vai alterar o processo ligado aos fornecedores e os impactos que ele terá para a empresa?

O Passaporte Digital do Produto representa uma nova era de transparência e consciência. Na Ferreira de Sá já trabalhamos com fornecedores certificados e fibras sustentáveis, mas o Passaporte Digital do Produto vai exigir uma integração total de dados. Isso reforçará a confiança do consumidor e valorizará o trabalho da marca, privilegiando qualidade e origem. É uma oportunidade para o design têxtil europeu se posicionar como referência ética e tecnológica.

Tendo a experiência de um trabalho para o segmento de luxo e de actuar como fornecedor da marcas excelência, de que forma isso beneficia o vosso trabalho? Não entra em conflito com a estratégia de marca própria?

Trabalhar para o segmento de luxo é, sem dúvida, um privilégio e um estímulo criativo. Esse contacto constante com projectos exigentes e personalizados eleva o nosso nível de rigor, detalhe e inovação. O luxo obriga-nos a ir mais longe, a aperfeiçoar processos, a experimentar materiais e a encontrar soluções únicas para cada desafio.

Tudo isso reflete-se naturalmente no desenvolvimento da nossa marca própria. A experiência acumulada no segmento de luxo dá-nos uma base sólida de excelência técnica, que depois se transforma em liberdade criativa. No fundo, o luxo ensina-nos a respeitar o tempo e o valor das coisas bem feitas. Valores que estão no centro daquilo que fazemos na Ferreira de Sá.

O “Careto” é uma das peças que se integra dentro daquelas produções baseadas nas tradições culturais.

No âmbito da reciclagem e do upcycling, que alterações têm  efectuado, que desafios e oportunidades foram abertos pela via da sustentabilidade?

A sustentabilidade e o upcycling fazem parte do nosso pensamento criativo, não como tendência, mas como uma forma de estar. Trabalhar com materiais naturais, reaproveitar excedentes e repensar processos é, para nós, uma oportunidade de explorar novas texturas e linguagens visuais.

Na Ferreira de Sá, o design sustentável não é apenas sobre reduzir impacto, mas sobre acrescentar valor e transformar o que já existe em algo novo, atraente e relevante. É um exercício de criatividade, responsabilidade e respeito pelo tempo das coisas.

De um ponto de vista antropológico, a tapeçaria portuguesa simboliza toda uma dimensão social e cultural que a distingue de outras congéneres. O que se tem vindo a perder ou a ganhar com a globalização e o multiculturalismo neste sector?

A globalização trouxe visibilidade e novas oportunidades para a tapeçaria portuguesa. Ganhámos alcance e diálogo com o mundo, mas também o desafio de preservar a nossa identidade.
O risco está em perder o ritmo lento e o detalhe que definem a autenticidade da nossa produção. O equilíbrio está em crescer sem perder a alma e inovar mantendo o vínculo ao território e ao know-how.

Um tapete é uma peça de estofo que tem alterado ao longo dos séculos a sua utilidade. Neste momento, de que forma é ele mais desfrutado?

Hoje o tapete deixou de ser apenas um elemento funcional e tornou-se peça de expressão. É vivido como uma extensão do espaço e da personalidade de quem o habita, sendo um ponto de conforto, mas também de identidade e emoção.  

É um objecto de design total que comunica, enquadra e transforma o ambiente.

Trabalham também com artistas plásticos e tiveram experiências com nomes ligados à arquitectura. Que episódios guarda com maior carinho?

Trabalhar com artistas e arquitectos é sempre uma experiência de descoberta. Cada colaboração é um encontro de linguagens, entre o olhar do artista, mais conceptual, e o do designer, mais construtivo.

Recordo com especial carinho os projectos e colecção desenvolvidos com o arquitecto Álvaro Siza em que o tapete passa a ser uma extensão da sua obra, uma superfície de pensamento e emoção.

O que é o bom design de tapeçaria?

É aquele que concilia criatividade, técnica e emoção.

Um bom design não é apenas bonito, é pertinente, intemporal e responsável. Na tapeçaria, isso traduz-se em equilíbrio entre gesto artesanal, inovação tecnológica e expressão contemporânea.

Um bom tapete é aquele que nos faz parar, olhar e sentir, e ao mesmo tempo, resiste ao tempo.

Pormenor de “Sul”, da nova colecção Além Tejo.

Mais informação da nova colecção Além Tejo da Ferreira de Sá: https://alem-tejo.ferreiradesa.com